Há clichês que reverberam em
solo brasileiro há décadas e parecem muito mais camuflar a realidade do que
ressoar o que efetivamente somos. Reverbera-se que Deus é brasileiro, que o
Brasil é o lugar da tolerância, que não há melhor lugar no mundo para se viver
do que aqui, já que aqui não há guerras, que o povo brasileiro é diferenciado,
etc. Os argumentos que justificam tais premissas são tão rasos quanto a
capacidade de ler o mundo de quem os pronuncia.
Ao que parece, somos leitores medíocres de nós
mesmos ou à luz do que prenunciou Sérgio Buarque de Holanda, somos cordiais por
natureza. Desde sempre, cumprimos a
risca a assertiva buarqueana, firmando, assim, o Brasil como o país da
cordialidade. Cordialidade que encobre toda a nossa hipocrisia; que cria uma
espécie de carapaça assegurando-nos a cometer as maiores atrocidades em nome da
máscara da famigerada simpatia brasileira. A cordialidade que, historicamente,
nos veste encobre os nossos interesses mais sujos, as nossas crueldades
cotidianas e os nossos traumas históricos. Afinal, não somos o país da
tolerância? Homofobia, racismo, sexismo, violência contra a mulher não cabem em
território nacional. Mas, por trás da artificialidade que nos encobre, está o
Brasil real. Aquele que só passa na TV quando convém.
Somos todos Maju, somente quando esta angariou,
à duras penas, seu próprio espaço, fugindo das margens as quais seria “destinada”
a ocupar. Mas caso a Maju se transfigure na menina negra que pede esmolas no
sinal, no “moleque vagabundo” que fuma crack, no menor que nos rouba a bolsa, o
que cabe a ela é a redução das pouquíssimas possibilidades de ser Maju. Vota-se, rotineiramente, a favor da
intolerância, reduz-se a maioridade penal, encarcera-se, mais uma vez, o negro,
o pobre, o favelado, e ainda assim, grita-se aos quatro cantos que fazemos
parte de um Brasil que se aceita multicultural. Hasteamos a bandeira do
multiculturalismo e o que dela escorre é o vermelho da fusão entre o verde e o
amarelo positivados em nome da ordem. O sangue que, secularmente, escorre é
negro, é indígena, é de matriz africana, é marginal.
Mas, afinal, não vivemos em
uma democracia? Democracia, cotidianamente,
rasurada em nome de interesses particulares incrustrados no sujeito público de
essência cordial. Ainda com as mãos sujas de sangue, tenta-se, em nome do
capital e das empresas que o legitimam, apagar as memórias dos nossos maiores
traumas: a ditadura militar e a escravidão. Vende-se, pois, a ideia de que
somente os militares nos salvariam. Mas nos salvariam de quê? Da democracia? Da
inclusão social? Da aceitação de nossas diferenças?
Felizmente, a democracia no
Brasil amadureceu a ponto de não mais, como em um passado recente, ratificar a
sugestão de mais um golpe. A rasteira que foi dada em Jango, com a conivência
da elite e de uma classe média sugestionada a não pensar, mas apenas reproduzir
o já minuciosamente planejado, derrubou as bases de uma democracia ainda
imatura. E a imaturidade parece caminhar lado a lado da ignorância. Nesse sentido,
não dá para ignorar os pilares, não democráticos, que sustentam os meios de
comunicação no Brasil: o capital imbricado aos jogos de interesse tem como produto
o monopólio da palavra. Dá-se, assim, voz, de maneira irresponsável, a palavra
dinheiro, manipula-se a realidade, valendo-se de artifícios que sugestionam a
população a reproduzir interesses sujos, sem ao menos percebê-los. Dessa
maneira passam a coexistir dois países, coabitando supostamente o mesmo
território: O Brasil que passa na TV e o Brasil que, de fato, existe.
O que se tem hoje é uma
mídia que dissemina, reafirma e enaltece o famoso complexo de vira-latas que
nos persegue há tempos. À conta gotas, midiatiza-se o complexo de vira-latas e
vende-se a ideologia de que valemos menos, não somente para além das fronteiras
brasileiras, mas também diante da supremacia do poder midiático.
Sabiamente, as
muitas vozes que emergem como uma espécie de contradiscurso ao monopólio
midiático permitem romper com as hipocrisias instauradas e vislumbrar um
Brasil cuja imagem é plural e reflete as diferenças que se tenta há séculos
soterrar.
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